29.11.11

tantum ergo

a tarde é assim: uma janela coberta com renda branca
e por ela passa (amarela e líquida)
a sinfonia de um sol de novembro que me lembra bach cantado em budapeste
– e essa saudade de tudo, de tudo, tudo.

no dia em que eu partir desse mundo, amor meu
lembra de mim,
mas não com meu nome, meu rosto, minhas bobagens:
lembra de mim com esse sol de novembro feito de bach cantado em budapeste.

lembra que eu estarei naquela tarde
pleno e transcendido
apesar da carne e da alma
cheio de saudade dessas coisas que, de tão grandes
não cabem em mim

– assim, como bach em budapeste.

15.11.11

cosmonautas

um homem nascido e criado numa aldeia portuguesa de onde nunca saiu
aldeia agora quase extinta (esta é uma história verdadeira)
certa vez, no fim da vida
resolveu subir num jumento e trotar um dia inteiro
seguindo o sol
até que no crepúsculo, do alto de um monte
olhou a terra que se espalhava no horizonte e declarou de forma solene
com a voz embargada:

"bem grande é este mundo..."

iuri gagarin numa aldeia portuguesa.

14.11.11

sem título # 4

ainda no inverno, cupins fecundam o verão nas lâmpadas da sala.
não é à toa que passei o dia cercado por bebês:
a esperança é física
e toca corneta.

sem título # 3

o pombo é a pedra portuguesa que ganha asas e decola
a voz do vendedor de halls é o mínimo canto que podem as massas
a troca de tiros, assim que estanca, faz lembrar aos gravatas que a vida é de vidro e breve.

tudo à minha volta muda
se apaga
vira outra coisa

tudo menos você
e a tua falta
– essa sim, literal.

sem título # 2

chove e é boa a chuva.

ela começa a cair na calçada e isso me faz pensar nas coisas que vêm do nada
como a amizade, a morte, um acidente
e o próprio fato de eu estar aqui-agora e pensar nisto enquanto poderia ocupar-me de tantas outras ideias em tantos outros lugares.

chove e eu penso que a chuva é um vento que pôs terno e gravata para ir à missa
e que o espírito de Deus sobre as águas nos dias da criação caiu sobre o mundo como chuva (a primeira chuva)
e que ela volta sempre (como neste fim de tarde de agosto)
pra nos mostrar que a realidade, por mais investigada e medida e explicada
é ainda uma feira de milagres, dos mais simples aos bem solenes
e quem tem ouvidos que ouça
e quem tem olhos que veja:
é tudo assombro, é tudo estranho.

chovia e era boa a chuva
como um dia terá sido esse café
como um dia terá sido essa mesa
eu – homem possível entre tantos homens possíveis
banal e único – como a chuva, a mesa, o café.

é um privilégio doloroso a consciência.

"kids"

as estrelas vêm deslizando num céu de rock and roll
e nós bem ali esperando alguém pra nos dizer
olha a colisão entre os corpos rendidos no salão
me tomou as mãos, nos guardamos num fundo de água azul

setembro então chegou mais cedo
e eu voltei de vez à tona:
nós temos pressa/ninguém tem pressa

e quem não dormiu tendo dentro um sangue bem melhor?
quem não quis ser já o que há tempos deixava pra depois?
as meninas vêm e os meninos não sabem como agir
me tomou as mãos, dividimos sozinhos lua azul

setembro então chegou mais cedo
e eu voltei de vez à terra:
nós temos pressa/ninguém tem pressa.

há uma palavra escrita em teu corpo

há certamente uma palavra escrita em teu corpo
escondida
talvez um nome uma falta
números? (o dia em que fostes mais feliz)
ou quem sabe palavra esquecida de língua morta, povo extinto
do qual és a última filha, metade sem par.

por isso tua doçura arrasta esses fins de tarde de julho
ou pelo menos isso me dizem teus olhos,
teus olhos.

há em ti, certamente, escrita em negro e à mão
– tua própria mão, mão de outrora,
há em ti uma palavra escondida.

descobri-la em ti
lê-la em voz alta
e saber que nela começa e termina teu espírito:
sim, é isto, senhora, o que eu mais desejo
agora
sobre esta mesa
onde estarei a noite inteira
dando de comer à tua ausência.